Artigo de pesquisadores da UNB/Universidade de Brasília, mostra porque negociar é dever do Estado

Posted by GeociênciasGreve2014 on quarta-feira, julho 16, 2014



O DEVER DE NEGOCIAR:
LEALDADE, MORALIDADE E PUBLICIDADE
NO ESPAÇO UNIVERSITÁRIO

*Renata Queiroz Dutra - UNB
**Pedro Mahin Araújo Trindade - UNB

No final  de  maio,  professores  e  funcionários  das  universidades  públicas  estaduais de São Paulo – USP, Unicamp e Unesp – instauraram uma greve que perdura  até  hoje,  sem  sinais  de  arrefecimento.  O  motivo?  O  Conselho  de  Reitores  das  Universidades  Estaduais  de  São  Paulo  (Cruesp)  tem  se  mostrado  irredutível  em  sua  recusa em negociar com as categorias.
A rigor, houve um simulacro de negociação, em  que o Conselho ofereceu um “reajuste” de 0% e o adiamento das negociações salariais  para setembro ou outubro.

A  situação  é  comparável  ao  tratamento  intransigente dado  a  greves  de  trabalhadores  por  lideranças  neoliberais  como  Margareth  Thatcher,  que  recheou  seu  currículo  com  paralisações  de  até  um  ano  de  duração,  sem  negociação  (Greve  dos  mineiros, 1985). Isso conduz a importantes reflexões sobre a vinculação do Estado, na  condição de empregador, aos princípios democráticosque devem nortear as negociações  entre o poder público e seus agentes por melhores condições de trabalho.

Em primeiro lugar, é preciso deixar assente que a legislação brasileira veda a recusa  do  empregador  a  negociar  quando  provocado  a  tanto  pelo  sindicato  de trabalhadores (art. 616 da CLT).

Embora o destinatário imediato dessa norma não sejao Estado, a Convenção  151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),ratificada pelo Brasil em junho de  2010,  estabelece  que  devem  ser  adotadas  medidas  necessárias  ao  pleno desenvolvimento  e  utilização  de  procedimentos  de  negociação  entre  autoridades públicas  e  organizações  de  empregados  públicos  sobre  as  condições  de  emprego  (art. 7º).  A  mediação  da  norma  internacional  torna  possível  estender  a  vedação  à  recusa  a negociar ao Estado e, no caso, às universidades públicas do Estado de São Paulo.

Em  segundo  lugar,  assim  como  o  empregador  privado,  também  o  Estadoempregador,  no  contexto  do  Estado  Democrático  de  Direito,  deve  observância  aos princípios basilares das relações coletivas de trabalho (princípio da boa-fé ou lealdade) e, sobretudo, aos princípios constitucionais da moralidade e da publicidade (art. 37 da Constituição).

Ou seja, não só o Estado é obrigado a examinar as propostas apresentadas por  seus agentes, como também, deve oferecer contrapropostas transparentes, motivadas e informadas,  tendentes  ao  consenso.  A  apresentação  de  contrapropostas  vis,  ou  ainda,  inviáveis não serve à validade do procedimento. A resposta do Estado às demandas de  seus agentes, efetivamente, deve ter por objetivo acelebração de um acordo.

A aposta  na  solução  negociada  de  demandas  por  melhores  condições  de trabalho no setor público é, antes de mais nada, uma aposta democrática: entrega-se aos  administradores  públicos,  bem  como  aos  agentes  a  serviço  do  Estado  a  construção coletiva de uma resposta adequada a esses conflitos, na confiança de que a maturidade da nossa democracia ensejará o respeito aos procedimentos democráticos afirmados pela Constituição.

É bem verdade que a negociação  coletiva  entre  o administrador público  e os agentes a serviço do Estado enfrenta sérias objeções, na medida em que é dependente de prévia  dotação  orçamentária  e  que  os  agentes  públicos,  em  sua  ampla  maioria,  são regidos por regimes institucionais, e não contratuais. As universidades públicas, porém, vivem  uma  situação  peculiar,  na  medida  em  gozam  de  ampla  autonomia,  inclusive orçamentária. Isso reduz consideravelmente as resistências às negociações diretas entre reitores e professores e funcionários de instituições públicas de ensino superior.

Além disso, desde a década de 1960, observa-se um crescimento do índice de sindicalização  no  serviço  público,  o  que  requer  um  tratamento  adequado  das reivindicações  democráticas  de  agentes  públicos  por melhores  condições  de  trabalho, observadas as particularidades da Administração Pública.

A agenda  internacional  de  proteção  ao  trabalho  acompanhou  esse  fenômeno, como  se  percebe  da  Convenção  151  da  OIT,  de  1978,  que  inclui  a  negociação  entre autoridades  públicas  e  organizações  de  empregados  públicos  como  um  instrumento adequado ao atendimento das reivindicações formuladas por agentes públicos a serviço do Estado. Essa previsão é reiterada na Recomendação 159 da OIT.

Além da Convenção 151, também merecem destaque as Convenções 87, 98 e 154 da OIT, que dispõem sobre os direitos à sindicalização e à negociação coletiva. Tais Convenções vinculam a atuação do Estado brasileiro em matéria de sindicalização e de negociação coletiva, seja por força de ratificação  (Convenções 98 e 154) ou em virtude da eficácia vinculante da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no  Trabalho,  que  qualifica  os  direitos  à  sindicalização  e  à  negociação  coletiva,  previstos,  respectivamente,  nas  Convenções  87  e  98  da  OIT,  como  direitos fundamentais do trabalho.

E, se  o  direito  à  negociação  coletiva  é  um  direito  fundamental,  não  pode  o Estado brasileiro, cujo papel principal é justamente a promoção e a garantia de direitos fundamentais,  recusar-se  aplicar  todos  os  esforços  necessários  ao  seu  pleno desenvolvimento.

Nesse sentido, os reitores da USP, da Unicamp e da Unesp não só tem o dever de  se  dispor  a  negociar  imediatamente  a  pauta  reivindicatória  apresentada  por professores  e  funcionários  dessas  universidades,  como  devem  fazê-lo  de  forma transparente, motivada e informada, se pretendem realizar o princípio democrático no espaço  universitário.  A  autonomia  dessas  instituições,  inclusive  em  termos orçamentários, permite o atendimento negociado – evidentemente, mediante concessões reciprocas – da demanda de seus professores e funcionários por reajuste salarial.

Democracia é um valor que deve ser observado por tais dirigentes na condução diária  de  suas  atividades  públicas,  notadamente  na  definição  de  suas  prioridades administrativas e na forma de lidar com as demandasde professores e funcionários por melhores  condições  de  trabalho. 

Talvez  seja  preciso lembrar  que  o  que  move  uma Universidade  são  aqueles  que  nela  empregam  seu  trabalho,  sejam  professores, funcionários ou alunos, que, portanto, devem ser considerados material e politicamente na construção dos rumos da instituição.

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* Renata  Queiroz  Dutra  é  mestre  e  doutoranda  em  Direito,  Estado  e Constituição pela Universidade de Brasília, analista judiciária e assessora de Ministro do TST.

** Pedro Mahin Araujo Trindade é especialista em Direito Material e Processual do  Trabalho  pelo  Centro  Universitário  IESB/DF,  mestrando  em  Direito,  Estado  e Constituição pela Universidade de Brasília e advogado.


Ambos  os  autores  integram  o  Grupo  de  Pesquisa  “Trabalho,  Constituição  e Cidadania”, vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
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